Trabalho doméstico na pandemia: Após o almoço no home office, de quem é a louça?
Em dezembro de 2019 foi identificado um novo tipo de vírus que muitos países não estavam preparados para enfrentar. Autoridades governamentais do mundo orientaram aos seus cidadãos e cidadãs, que potencialmente tiveram contato com a infecção, que permanecessem em suas casas em quarentena (Brooks et al., 2020), para que não houvesse uma maior disseminação do até então desconhecido Coronavirus. A partir desse cenário, visou-se a implementação de home office em várias empresas. Ou seja, os trabalhadores e trabalhadoras iriam exercer suas atividades de modo remoto em suas casas. Antunes (2020), coloca que tal prática se caracteriza quase como um verdadeiro "laboratório de experimentação” advinda do avanço informacional-digital que não é atual, mas que vem se intensificando com o tempo. O autor ainda afirma que a prática dessa forma (home office) traz alguns aspectos como: individualização do trabalho, menos práticas solidárias e coletivas no espaço de trabalho, fim da separação da divisão tempo de trabalho e tempo de vida, dentre outras que no ponto de vista do capital são vantajosas para os empresários.
A duplicação e justaposição entre trabalho produtivo e reprodutivo, no home office, segundo Antunes (2020), incide no aumento do trabalho feminino nos lares brasileiros que, agora, em vista da pandemia, se fazem também “escritórios”. Em 2019, 92,1% das mulheres realizaram atividades domésticas, contra 78,6% dos homens (IBGE, 2019). A pesquisa considerou como tarefas domésticas atividades como: preparar ou servir alimento, arrumar a mesa, lavar a louça, cuidar da limpeza, cuidar dos animais domésticos, fazer compras e demais atividades feitas no lar. Com relação ao cuidado de pessoas, entendido pelo IBGE (2019), dentre outras ações, como o auxílio nos cuidados pessoais e nas atividades educacionais, 36,8% das mulheres afirmaram realizar essas atividades e 25, 9% dos homens cumprem o mesmo trabalho. Além disso, Brooks e colaboradores (2020) trazem que a experiência da quarentena pode trazer para as pessoas danos críticos à saúde mental, sintomas graves de depressão, estresse pós-traumático, raiva e baixo rendimento no trabalho. Contudo,como estamos vendo, a experiência da quarentena não é vivida igualmente entre homens e mulheres, sendo provável que dentro das residências brasileiras tenhamos, neste momento, trabalhadoras ainda mais adoecidas e sobrecarregadas com trabalho home office e o trabalho doméstico.
Esta pandemia, que outrora era apresentada, nas redes sociais e mídia, como “democrática, sem distinção de classe, raça e gênero”, distingue precisamente quem tem o direito, primeiramente ao emprego, em vista de que 14,6 milhões de brasileiros (as) foram afastados de seus empregos entre 24/05 e 30/05 (IBGE, 2020); e, também, os privilégios entre o trabalhador e a trabalhadora em regime home office. Pois, é sobre a mulher que o trabalho doméstico irá reincidir. Diferenciando profundamente a experiência da quarentena já tão danosa à saúde.
Porém, não se pode generalizar para todas as mulheres a vivência do trabalho doméstico como igual. Krúpskaia (1909-1910/2020) aponta que a mulher de posses transfere à empregada o dever do cumprimento dos afazeres de casa. Ainda assim, o trabalho recai para uma mulher, estendendo a relação de opressão. Pode-se observar algumas diferentes situações que muitas empregadas, em sua maioria negras, vivenciam nesse período de pandemia. Muitas foram demitidas pela crise instaurada, e até mesmo, pelo receio de serem vetores do vírus (DIEESE, 2020). Outras foram mantidas permanentemente sem poderem retornar a sua própria casa (ONU MULHERES, OIT, CEPAL, 2020). Também, houve as que se beneficiaram com ações governamentais na tentativa de manter o emprego de trabalhadoras que tiveram seus contratos suspensos ou salário reduzido, (DIEESE, 2020), uma alternativa para as famílias que não queriam demitir suas funcionárias. Ainda tiveram aquelas que não foram liberadas de seus trabalhos. Antunes (2020) nos lembra o caso de uma empregada doméstica que não foi liberada de seus serviços e foi infectada pela patroa que não a avisou que testava positivo para coronavirus, e que dias depois veio a falecer. Assim, ainda segundo Antunes, a produção social, que deveria atender às necessidades humanas-sociais, se entrega para a auto-reprodução do capital, tendo como consequência a “mercadorização da vida”. É negado às mulheres empregadas, pobres e negras o direito à quarentena. É imposto a essas trabalhadoras cuidados com sua saúde como de sua família, e ainda a realização das tarefas domésticas de sua casa e de seus patrões, tendo em vista que seu trabalho não oferece a opção home office. Ficando entre a exposição ao vírus e o desemprego em meio a uma devastadora pandemia.
Por fim, a fala de Krúpskaia sobre a hipocrisia do “respeito” pelo trabalho doméstico, no século passado, ainda se faz presente no século XXI, já que muitos que pronunciam esse respeito por esse trabalho jamais de fato o fazem (Krúpskaia, 1909-1910/2017). Segundo ela, enquanto a vida familiar estiver ligada a tarefas como limpar, cozinhar, educar os filhos e afins, o trabalho doméstico ainda recairá sobre a mulher, e aquelas que forem contra essa situação serão acusadas de não “amar” seus esposos e famílias. Ademais, como disse Silvia Federici em relação à falsa ideia de amor construída pelo patriarcado, (Tzul, 2017), tudo se faz por amor, que por amor se limpa e cozinha, mas esquecem de considerar que o que chamam de amor, não é nada mais que serviço não pago.
O tema do trabalho doméstico tem sido estudado no NUTRA, principalmente, sob a supervisão da pesquisadora Antônia Vaneska Timbó de Lima Meyer, professora substituta do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), coordenadora do Núcleo de Apoio Psicossocial à Comunidade da UECE (NAPSI) e membro do NUTRA. Recomendamos, para um maior aprofundamento do tema, a leitura de sua dissertação de mestrado intitulada “O lugar do trabalho reprodutivo: um estudo com donas de casa da cidade de Fortaleza”, defendida em 2018 sob orientação do prof. Cássio A. Bras de Aquino.
Nota: Apesar da discussão aqui abordada ser referente ao gênero Feminino, o texto foi redigido por um extensionista homem cis, com supervisão de sua orientadora, compreendemos a importância do protagonismo das mulheres e o local de reflexão e de mudança comportamental do homem cis na discussão. Estamos abertos ao diálogo e feedback de todas e todos.
* O termo quarentena se difere de isolamento,porque o último se caracteriza como isolamento da pessoa que já tenha sido contaminada pelo vírus, distanciando-se das pessoas saudáveis, (Brooks et al., 2020).
Imagem: Edilene Pereira, 41 anos. Toni Pires.
A duplicação e justaposição entre trabalho produtivo e reprodutivo, no home office, segundo Antunes (2020), incide no aumento do trabalho feminino nos lares brasileiros que, agora, em vista da pandemia, se fazem também “escritórios”. Em 2019, 92,1% das mulheres realizaram atividades domésticas, contra 78,6% dos homens (IBGE, 2019). A pesquisa considerou como tarefas domésticas atividades como: preparar ou servir alimento, arrumar a mesa, lavar a louça, cuidar da limpeza, cuidar dos animais domésticos, fazer compras e demais atividades feitas no lar. Com relação ao cuidado de pessoas, entendido pelo IBGE (2019), dentre outras ações, como o auxílio nos cuidados pessoais e nas atividades educacionais, 36,8% das mulheres afirmaram realizar essas atividades e 25, 9% dos homens cumprem o mesmo trabalho. Além disso, Brooks e colaboradores (2020) trazem que a experiência da quarentena pode trazer para as pessoas danos críticos à saúde mental, sintomas graves de depressão, estresse pós-traumático, raiva e baixo rendimento no trabalho. Contudo,como estamos vendo, a experiência da quarentena não é vivida igualmente entre homens e mulheres, sendo provável que dentro das residências brasileiras tenhamos, neste momento, trabalhadoras ainda mais adoecidas e sobrecarregadas com trabalho home office e o trabalho doméstico.
Esta pandemia, que outrora era apresentada, nas redes sociais e mídia, como “democrática, sem distinção de classe, raça e gênero”, distingue precisamente quem tem o direito, primeiramente ao emprego, em vista de que 14,6 milhões de brasileiros (as) foram afastados de seus empregos entre 24/05 e 30/05 (IBGE, 2020); e, também, os privilégios entre o trabalhador e a trabalhadora em regime home office. Pois, é sobre a mulher que o trabalho doméstico irá reincidir. Diferenciando profundamente a experiência da quarentena já tão danosa à saúde.
Porém, não se pode generalizar para todas as mulheres a vivência do trabalho doméstico como igual. Krúpskaia (1909-1910/2020) aponta que a mulher de posses transfere à empregada o dever do cumprimento dos afazeres de casa. Ainda assim, o trabalho recai para uma mulher, estendendo a relação de opressão. Pode-se observar algumas diferentes situações que muitas empregadas, em sua maioria negras, vivenciam nesse período de pandemia. Muitas foram demitidas pela crise instaurada, e até mesmo, pelo receio de serem vetores do vírus (DIEESE, 2020). Outras foram mantidas permanentemente sem poderem retornar a sua própria casa (ONU MULHERES, OIT, CEPAL, 2020). Também, houve as que se beneficiaram com ações governamentais na tentativa de manter o emprego de trabalhadoras que tiveram seus contratos suspensos ou salário reduzido, (DIEESE, 2020), uma alternativa para as famílias que não queriam demitir suas funcionárias. Ainda tiveram aquelas que não foram liberadas de seus trabalhos. Antunes (2020) nos lembra o caso de uma empregada doméstica que não foi liberada de seus serviços e foi infectada pela patroa que não a avisou que testava positivo para coronavirus, e que dias depois veio a falecer. Assim, ainda segundo Antunes, a produção social, que deveria atender às necessidades humanas-sociais, se entrega para a auto-reprodução do capital, tendo como consequência a “mercadorização da vida”. É negado às mulheres empregadas, pobres e negras o direito à quarentena. É imposto a essas trabalhadoras cuidados com sua saúde como de sua família, e ainda a realização das tarefas domésticas de sua casa e de seus patrões, tendo em vista que seu trabalho não oferece a opção home office. Ficando entre a exposição ao vírus e o desemprego em meio a uma devastadora pandemia.
Por fim, a fala de Krúpskaia sobre a hipocrisia do “respeito” pelo trabalho doméstico, no século passado, ainda se faz presente no século XXI, já que muitos que pronunciam esse respeito por esse trabalho jamais de fato o fazem (Krúpskaia, 1909-1910/2017). Segundo ela, enquanto a vida familiar estiver ligada a tarefas como limpar, cozinhar, educar os filhos e afins, o trabalho doméstico ainda recairá sobre a mulher, e aquelas que forem contra essa situação serão acusadas de não “amar” seus esposos e famílias. Ademais, como disse Silvia Federici em relação à falsa ideia de amor construída pelo patriarcado, (Tzul, 2017), tudo se faz por amor, que por amor se limpa e cozinha, mas esquecem de considerar que o que chamam de amor, não é nada mais que serviço não pago.
O tema do trabalho doméstico tem sido estudado no NUTRA, principalmente, sob a supervisão da pesquisadora Antônia Vaneska Timbó de Lima Meyer, professora substituta do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), coordenadora do Núcleo de Apoio Psicossocial à Comunidade da UECE (NAPSI) e membro do NUTRA. Recomendamos, para um maior aprofundamento do tema, a leitura de sua dissertação de mestrado intitulada “O lugar do trabalho reprodutivo: um estudo com donas de casa da cidade de Fortaleza”, defendida em 2018 sob orientação do prof. Cássio A. Bras de Aquino.
Nota: Apesar da discussão aqui abordada ser referente ao gênero Feminino, o texto foi redigido por um extensionista homem cis, com supervisão de sua orientadora, compreendemos a importância do protagonismo das mulheres e o local de reflexão e de mudança comportamental do homem cis na discussão. Estamos abertos ao diálogo e feedback de todas e todos.
* O termo quarentena se difere de isolamento,porque o último se caracteriza como isolamento da pessoa que já tenha sido contaminada pelo vírus, distanciando-se das pessoas saudáveis, (Brooks et al., 2020).
Imagem: Edilene Pereira, 41 anos. Toni Pires.
Fonte:
ANTUNES,R. Coronavirus: O trabalho sob fogo cruzado. 1. ed. São Paulo. Boitempo. 2020.
BROOKS,S,K.WEBSTER,R,K.SMITH,L,E.WOODLAND,L.WESSELY,S.GREENBERG,N. RUBIN,G,J. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. The lancet,2020. Disponível em: https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930460-8
DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICO. Como ficou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda na Lei 14.020/2020(conversão da MP 936/2020). 2020.Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2020/notaTec243lei14.020_MP936.html
DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICO. Quem cuida das cuidadoras: trabalho doméstico remunerado em tempos de coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.dieese.org.br/estudosepesquisas/2020/estPesq96covidTrabalhoDomestico.html
IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2019. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf Acesso: 17/06/2020
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua-COVID19. 2020 Disponível em: https://covid19.ibge.gov.br/ acesso: 18/06/2020
KRÚPSKAIA,N,K. Deve-se ensinar “coisas de mulheres” aos meninos? A revolução das mulheres, emancipação feminina na Rússia soviética. Boitempo. 2017.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A IGUALDADE DE GÊNERO E O EMPODERAMENTO DAS MULHERES – ONU MULHERES, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO
TRABALHO – OIT; COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE – CEPAL.Trabalhadoras remuneradas do lar na América Latina e no Caribe frente à crise do
Covid-19. Disponível em: https://www.cepal.org/pt-br/documentos/trabalhadoras-
remuneradas-lar-america-latina-caribe-crise-covid-19.
TZUL, G. EL Patriarcado del Salario: “Lo que llaman amor, nosotras lo llamamos trabajo no pagado”. 2017. Disponível em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2017/02/14/el-patriarcado-del-salario-lo-que-llaman-amor-nosotras-lo-llamamos-trabajo-no-pagado/
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