Precarização, Neoliberalismo e Relações de Trabalho
por Tauanaiara Morais
O assunto deste mês no nosso blog é a precarização do trabalho. Para falar sobre este tema que afeta o mundo laboral e a forma como ela se articula com o campo da saúde do trabalhador, entrevistamos Cássio Adriano Braz de Aquino, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenador do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA) e vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia organizacional e do Trabalho.
A entrevista foi divida em 5 partes que serão apresentadas ao longo do mês. Neste post são abordados diversos fenômenos econômicos, políticos e sociais, dentre os quais o nascimento da política neoliberal, a globalização e a reestruturação produtiva, a qual tem produzido formas de trabalho cada vez mais precarizadas.
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Saúde do trabalhador em debate: De que forma as políticas neoliberais, adotadas por muitos governos atuais, corroboram com formas de trabalho cada vez mais precarizadas?
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Cássio Aquino: Em primeiro lugar a gente precisa situar o que seriam essas políticas neoliberais e a idéia de precarieade, antes de precarização. A precariedade sempre existiu na história do mundo do trabalho, porém entre a década de 70 e a década de 80, paralelamente à expansão dos ideais neoliberais, surge essa noção de precariedade assumindo uma centralidade na forma de organização do mundo laboral. O que essas políticas neoliberais vão apresentar de concreto e diferente com o momento anterior? O momento anterior estava demarcado por um tipo de sociedade salarial, onde os direitos e garantias sociais, que igualavam a noção de trabalhador a noção de cidadão, estavam muito bem ancoradas. Havia uma série de críticas ao modelo de estruturação produtiva, e a gente pode fazer essa relação com o que se denominava de taylorismo e fordismo na forma de organização do trabalho, que a partir da década de 70 começam a ser questionadas. Então é nesse questionamento e no ideário neoliberal que vai haver uma junção ou uma aproximação de ideários. Por isso que se diz que a precarização, como fenômeno e não mais como um aspecto pontual de uma determinada realidade, surge no momento da expansão dessa lógica neoliberal. A partir da década de 70, o que existia pontualmente em alguns contextos do mundo do trabalho passa a ser um processo de transformação de toda a realidade laboral. Coincidentemente, dá-se também no curso da expansão do ideário neoliberal, no qual há uma flexibilização das estruturas produtivas, uma vulnerabilização e uma perda gradativa dos direitos e garantias sociais, porque se imaginava que o mundo do trabalho estava atrelado a uma legislação que impedia o crescimento econômico. A partir do momento que eu rompo com essa idéia, derivada dos ideiais neoliberais, abre-se espaço pra gerar o que se chama de processo de precarização.
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STD: a partir de que elementos a precarização pode ser observada mais efetivamente nas organizações e nas relações de trabalho?
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CA: São duas esferas diferentes. Tradicionalmente as organizações se caracterizaram como o espaço privilegiado de verificação do mundo laboral. Isso é um equívoco. Se a gente imaginar a realidade brasileira, por exemplo, a grande maioria dos trabalhadores estavam fora do âmbito organizacional, mas a partir do momento que as organizações começam a sofrer modificações e os efeitos desse processo de vulnerabilização dos direitos e garantias, temos a precarização do espaço organizacional. Mas a precarização ocorre nas relações que se dão também fora do âmbito organizacional. E que relações são essas? São relações que já marcavam uma realidade semelhante à brasileira. Isso é um gancho interessante pra gente imaginar que a realidade europeia, que vai trazer essa ideia de precarização. A categoria precarização surge no contexto francês e se expande de forma muita clara nos países latinos. A gente fala de precarização na Itália, na Espanha, em Portugal, no Brasil, mas, se você for para um país anglo-saxão como a Inglaterra, essa ideia de precarização não existe. Existe a noção de flexibilização. Existe na Alemanha, por exemplo, o processo de enfraquecimentos dos laços de trabalho, mas essa ideia de precarização está diretamente atrelada a um contexto social muito específico. Daí porque as relações de trabalho, que no Brasil sempre foram muito vulneráveis, já vinham se precarizando há um determinado tempo. Mas óbvio, a precarização ganha esse relevo, ganha essa intensidade, a partir do momento que ela atinge os países centrais ou que ela atinge os países mais industrializados. E ai é onde se começa a dar certa atenção ao processo de precarização que anteriormente não se dava. Isso dá margem, inclusive, a um grande autor, um sociólogo alemão chamado Ulrich Beck, denominar esse processo de brasilização das relações de trabalho na Europa.
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STD: Como a fragilização dos vínculos laborais afeta os modos de trabalhar?
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CA: Ela implica que juridicamente é mais fácil demitir as pessoas; as garantias que estavam atreladas ao modelo salarial começam a ficar debilitadas, por exemplo: as aposentadorias começam a ser questionadas, começa-se a aumentar as idades de aposentadoria, alguns benefícios que estavam diretamente atrelados a realidade do mundo do trabalho começam a ser modificados e começam a ser facilitados para que se possa ter um desenvolvimento econômico (isso falando em termos do discurso neoliberal), para que se possa fazer crescer as organizações e o próprio mercado de trabalho. Essa conotação de mercado de trabalho é fundamental, porque foi a partir dessa idéia, de que o mercado precisa abrir espaços para absorver um contingente cada vez maior de trabalhadores, que vai ser justificada a normatização da precarização. Ou seja, é preciso aumentar a possibilidade de fluxo de entrada e saída desses trabalhadores para que o mercado funcione de maneira autônoma e, seguindo o ideário neoliberal, de maneira mais libertária. É essa a lógica que começa a se estabelecer e começa a atuar sobre os próprios sujeitos implicados no processo. Derivam daí outras questões que vão desde aspectos individuais, desse trabalhador que começa a se questionar sobre o seu próprio vínculo de trabalho, aos impactos sociais, pois as categorias começam a se fragilizar, porque esse discurso individualizado da precarização vai colocar o seguinte: não é mais a minha categoria unida e fortificada que vai reivindicar, sou eu como sujeito, isoladamente. Começou a haver essa facilitação de exclusão desse mercado de trabalho, justificado pela necessidade econômica de melhorar as possibilidades de acesso, mas que na realidade é um discurso profundamente enganoso. Essa melhoria implica necessariamente em uma diminuição da satisfação e da possibilidade da realização desse sujeito no espaço do trabalho.
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