Setor Público e Precarização
Nesse post abordaremos a precarização do trabalho no setor público. Para tratar deste assunto, daremos continuidade a entrevista com professor Cássio Adriano Braz de Aquino, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenador do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA) e vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia organizacional e do Trabalho (SBPOT). Na entrevista o professor Cássio faz um contraponto entre a situação brasileira e portuguesa, pontuando exemplos de como é a realidade do setor público em cada país, além de discutir afirmações da presidenta Dilma Rousseff quando candidata.
STD: E quanto ao setor público, de que forma a precarização vem atingindo essa área?
CA: Bom, em primeiro lugar vamos começar fazendo uma recuperação também histórica. O Estado sempre teve um papel preponderante nessa articulação entre o capital e o trabalho. Dentro dessa lógica de um processo de precarização, a prestação do serviço público viria a ser o último bastião de manutenção da estabilidade ou das formas regulares de vinculação laboral. O que a gente identifica hoje é que o serviço público, talvez até pela adoção de uma prática gerencialista, que se separa de uma prática mais burocrática e também de uma prática mais paternalista, que foram os modelos que marcaram o gerenciamento do Estado; com essa lógica gerencialista, o serviço público se associa de forma muito direta com os modelos privados. Essa associação leva a quê? À adoção cada vez maior dessas práticas de precarização do serviço público. Então, o que antes era algo inimaginável para esse serviço, passa a ser uma política cada vez mais adotada. E surpreende porque apesar da lógica do discurso neoliberal ser profundamente combatida por partidos de esquerda (e quando eu falo em partidos de esquerda eu falo isso no modelo do mundo como um todo) o que a gente identifica é que também a esquerda começou a adotar essa forma de inserção ou de vínculo cada vez mais debilitado. Pra te dar um exemplo: existe um fenômeno em Portugal que são os chamados recibos verdes. Recibo verde é uma forma de vinculação, sem tantos direitos e garantias, que foi implantada por um governo socialista em Portugal, pelo Mário Soares. E esse modelo de inserção laboral foi profundamente aceito pelos jovens. Houve um processo, inclusive, de migração muito forte de brasileiros para Portugal, adotando essa vinculação com o mundo do trabalho a partir dos parâmetros do recibo verde, que não tinha décimo terceiro, não tinha férias remuneradas, quer dizer, até tinha, mas de forma bastante diferente daqueles trabalhadores ditos formais. Num momento de pleno crescimento econômico, isso era completamente aceitável. Há uns meses atrás estive em Portugal e observei a partir de uma matéria do “Mundo Diplomático”, que é uma publicação de crítica quanto à realidade econômica, eles falando qual era o efeito dos recibos verdes hoje na realidade do Estado português: o próprio Estado português começou a adotar como regime de trabalho a utilização desses recibos verdes. Então todo aquele fluxo de migração de brasileiros que iam para Portugal está sofrendo um processo de inversão: eles estão fugindo e voltando ao Brasil. Imagine você o que é ganhar 800 euros e ter que pagar 400 de retribuição sanitária, de retribuição de saúde, de uma série de garantias que não estão previstas nessa legislação do recibo verde, que vincula esse trabalhador com o espaço de trabalho dele. E isso tem se expandido em quase todos os países. Então o serviço público tem, pra nossa infelicidade, adotado cada vez mais a prática também da precarização. E a gente não precisa ir tão longe pra ver que, dentro da nossa realidade de país em desenvolvimento, de país de vanguarda (porque hoje em dia o Brasil está sendo uma vanguarda, não só por ter convivido com todos esses modelos de inserção laboral ao mesmo tempo) é uma realidade cada vez mais utilizada pelos partidos de esquerda e pelos chamados partidos progressistas de uma maneira geral.
STD: A candidata à presidência, Dilma Roussef, que agora é presidenta, frisou bastante em algumas entrevistas a questão da precarização no setor público. Disponibilaremos de alguns vídeos do youtube e gostaríamos que o professor pudesse comentar e falar um pouco sobre isso.
CA: Na realidade, assistindo a esse vídeo, a gente percebe que a prática discursiva muitas vezes pode ser falaciosa. Com isso eu não estou dizendo que a presidenta mentiu. Mas, durante o processo da campanha eleitoral, algumas verdades são ditas de uma forma diferenciada. O que eu tinha comentado anteriormente sobre a utilização cada vez mais usual por parte do Estado dos processos de precarização junto aos seus servidores vai de encontro ao que diz a presidenta. Na realidade o que a gente tem, ainda que seja uma promessa de respeito ao funcionalismo público, é da ordem da impossibilidade, porque a gestão pública não está definida única e exclusivamente pelo quadro da presidência. A gestão pública também está mediada pelas empresas (públicas e privadas), pelas formas de negociação que se dão no âmbito do poder e, muitas vezes, por interesses do próprio mercado de trabalho. A pressão sobre a gestão, seja ela no nível federal, estadual ou municipal, impede que esse desejo que foi verbalizado pela presidenta, de que a precarização, a temporalidade dos trabalhadores seja algo a combater no processo de inserção laboral, seja realizado. O que a gente identifica, inclusive pelas últimas informações, é uma redução progressiva dos concursos, até pelos exorbitantes gastos feitos no ano anterior, o que é um impacto. Ou seja, ela não vai poder sustentar todo esse discurso dos concursos públicos, da inserção formalizada dos trabalhadores no âmbito do serviço público, porque a realidade supera o desejo do que ela apregoa nesse discurso tão claramente identificado. Esse não é um discurso exclusivo da presidenta Dilma. Foi um discurso do partido opositor mais forte, no caso, o PSDB, através da fala do candidato José Serra. A própria Marina Silva, do PV, também apregoou essa necessidade de formalizar as relações, principalmente as mediadas pelo Estado. Mas a gente sabe que a realidade supera isso. O que é importante a gente considerar é que isso não pode ser naturalizado. Se, num determinado momento de crise econômica, de crise desse mundo do trabalho, for necessário lançar mão de vínculos mais debilitados, isso pode até ser aceitável. O que não pode ser aceitável é a naturalização desse processo e a expansão e regulamentação de um processo de precarização por parte do Estado, porque ao Estado cabe a defesa do próprio trabalhador. Sendo assim, como é que eu vou falar de um trabalhador, como é que eu vou defender a sua lógica, se eu não posso, a partir dos princípios desse desejo, garantir a estabilidade e todos os direitos sociais para ele? Então a gente tem que ficar atento porque, muitas vezes, o que está apregoado dentro do discurso quando vai para o campo da realidade se depara com limitações, e essas limitações precisam ser gerenciadas. Logo, antes de falar de um total respeito ao serviço público de uma maneira geral é preciso matizar as questões que fogem muitas vezes ao controle do Estado.
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