Debilidade dos Vínculos de Trabalho no Setor Público
Continuando ainda no tema da precarização no setor público, mais uma parte da entrevista do professor Cássio Adriano Braz de Aquino, de Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenador do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA) e vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia organizacional e do Trabalho (SBPOT).
Neste post, o leitor terá contato com a polêmica discussão sobre a medida provisória que cria a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, a qual permite a contratação de servidores públicos por meio da CLT nos Hospitais Universitários. O professor ressalta que a existência de vínculos de trabalhos diferenciados, coexistindo numa mesma instituição, pode gerar conflitos, pois haveria uma distinção de direitos e retribuições salariais entre trabalhadores que desempenham a mesma atividade. Cássio ainda enfatiza que “em nenhum momento, fragilizar o trabalhador seja uma estratégia que perdure e que faça o mercado melhor”.
STD: No final de seu governo, o presidente Lula editou medida provisória que criava a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares que permitiria a contratação de servidores públicos por meio da CLT nos Hospitais Universitários. Eu gostaria que o professor comentasse um pouco sobre esse assunto, destacando a relação da criação desta empresa com a precarização no setor público.
CA: O contexto da universidade é muito específico e me diz respeito diretamente, porque eu sou funcionário público e funcionário direto de uma universidade. Sou servidor direto do Estado a partir da minha função de professor. Eu tenho uma pesquisa a qual trabalha exatamente com o processo de precarização a partir da utilização, principalmente no governo Fernando Henrique Cardoso, da figura do professor substituto. O professor substituto está para o serviço público, no âmbito da docência, como em alguns serviços dentro do hospital universitário estão os funcionários terceirizados ou os funcionários de fundação (que não deixa de ser também um processo de terceirização). O que se dá na convivência, dentro desse espaço, de vínculos tão diferenciados exercendo as mesmas atividades? Um problema sério de adaptação desses grupos no ambiente laboral. Pontuando a partir da pesquisa que eu fiz com os professores substitutos a gente chega no âmbito dos hospitais universitários: os professores substitutos tinham prerrogativas de atividade que se assemelhavam demais com os professores efetivos, mas tinham limitações de ação. Limitações, por exemplo, numa decisão departamental. A Universidade tem várias instâncias administrativas e o departamento toma decisões sobre um conglomerado de unidades curriculares. Esse professor substituto poderia dar aula, sua função era desenvolver atividades de ensino, mas quando chegava numa reunião de departamento ele não poderia votar, ou seja, a palavra dele era cerceada. Ele tinha direito a voz, mas não tinha direito a voto. É uma limitação da participação desse trabalhador. Outro aspecto muito claro estava relacionado ao controle do tempo de trabalho pois ele teria um contrato por tempo determinado. Levando isso para o âmbito do hospital universitário nós temos duas diferentes categorias atuando nesses espaços: o funcionário concursado e os terceirizados. Os direitos são diferenciados, os salários são diferenciados, mas as atividades não necessariamente são diferenciadas. O que isso implica? Implica na vivência permanente do processo de precarização espelhado na realidade do outro. O trabalhador que fez o concurso tem direito aos anuênios, as férias remuneradas, ao décimo terceiro sem nenhum problema de questionamento jurídico. Estamos falando de terceirizados como se fosse uma só categoria, mas existem vínculos diferenciados dentre estes trabalhadores: há os funcionários de fundação e aqueles terceirizados pela prática de uma única atividade. É o que a gente chama de funcionário de uma empreitada: um determinado serviço precisa ser prestado e esse trabalhador é contratado por um tempo muito exíguo. Ele vai desenvolver essa atividade e ao terminá-la seu contrato é extinto, ou seja, o vínculo dele desaparece. Imagine que trabalhando com uma realidade psicossocial – até porque eu sou psicólogo por origem efetivamente, embora eu me intitule como professor – o que implica pra esse trabalhador desenvolver a atividade que outro desenvolve, mas não ter os direitos e garantias e, o que é pior, não ter o mesmo salário que o outro tem dentro de uma sociedade de consumo. É uma geração de conflitos permanentes. Quem trabalha na área de administração de conflitos percebe isso de forma muito clara. É como se fossem funcionários com categorias diferenciadas. Assim hierarquiza-se a importância desse trabalhador. O trabalhador concursado é aquele mais valorizado. Enquanto que os trabalhadores que não passaram pela lógica do concurso são tidos como mais descartáveis. Imaginar esse conceito de descartabilidade para um sujeito, para uma pessoa, é gerar problemas seriíssimos de adaptação à própria realidade de trabalho. Que tipo de investimento eu vou fazer na minha atividade que me garanta um retorno, se o meu vínculo é predeterminado, se eu não tenho garantias, se eu não tenho benefícios gerados por essa própria atividade. Isso gera um processo de adaptação que cada vez mais se complica para a gestão dos hospitais universitários. Eu diria que os hospitais constituem quase que uma bomba relógio em termos de relações de trabalho. A tentativa da criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares é, de uma certa forma, mascarar um pouco essa relação, mas ela acaba repercutindo esse mesmo tipo de vínculo, porque vai haver a diferença entre o funcionário concursado e o celetista. Sabemos que o regime estatutário, que regulamenta quem está dentro da universidade através de concurso, é diferenciado da CLT, da consolidação das leis de trabalho, porque o que rege um funcionário não vai reger o outro. As formas de participação e inserção são completamente diferentes. A tentativa, como um caminho, pode até ser bem-vinda, mas ela não garante a superação do problema, pois teremos duas categorias diferenciadas desenvolvendo a mesma atividade num mesmo ambiente de trabalho. A geração de conflitos, o aumento considerável dos problemas de assédio moral nos espaços de trabalho acaba advindo dessa realidade. Entra-se, assim, numa seara mais preocupante que é a da saúde do trabalhador. É observado um impacto na saúde desse trabalhador, nas relações de prazer e sofrimento. Aquilo que é básico para a constituição do sujeito, que a relação dele com o trabalho, acaba sendo abalado.
STD: No blog Luis Nassif Online há uma entrevista com o ex-ministro da saúde José Gomes Temporão, onde há questionamentos sobre a contratação via CLT no serviço público.....
Tem um coisa que é importante considerar: a precarização não é uma questão ingênua. Não é uma derivação histórica do acaso. O conceito de precarização nasce de uma realidade política. Se analisarmos a raiz da palavra, precariedade, significaria qualquer tipo vulnerabilidade ou debilidade; o que é colocada no âmbito da instabilidade, da incerteza. A noção de precariedade está diretamente associada ao conceito de pobreza no seu nascedouro. No âmbito do trabalho isso foi muito bem apropriado. Só que essa apropriação, eu afirmo isso inclusive nos estudos que eu tenho realizado nos últimos 2 ou 3 anos, quase que fazendo uma genealogia do conceito de precarização, tenta de alguma forma justificar isso como algo natural. É essa a crítica que eu faço: eu não vejo que isso seja algo natural. Isso é uma decisão política. Por exemplo, quando o ministro Temporão afirma que a estabilidade pode ser algo nefasto para o rendimento do trabalhador ele, de certa forma, está reafirmando um discurso político neoliberal. A imagem do funcionalismo público, de uma maneira geral, é daquele sujeito insolente: “ele já esta com tudo garantido, ele não precisa de mais nada na vida então ele não trabalha”. Sempre que eu escuto esse tipo de alegação, tenho vontade de convidar essas pessoas para comparecerem um pouco mais a realidade do serviço público. Eu imagino que bons e maus trabalhadores não estão vinculados a ideia de serviço público ou serviço privado. Eu vivencio isso no meu cotidiano e vejo excelentes funcionários públicos que trabalham, muitas vezes, para além das horas que são determinadas. A realidade docente hoje em dia não está restrita as 40 horas que é determinada pela universidade. Tem gente que trabalha nos fim de semana, nos feriados; as férias, muitas vezes, são utilizadas para escrever um artigo, que não foi possível produzir no período normal de atividades. Eu considero esse tipo de afirmação que o ministro fez um engano. Não sei se um engano intencional. Não quero entrar nessa seara, pois não conheço o ministro para dizer se foi um engano intencional. Mas eu poderia me arriscar a dizer que o foi porque eu vejo o processo de precarização como uma estratégia muito bem traçada de docilização do trabalhador. Em que sentido? Os temporários, que tem um contrato por tempo determinado, acabam sendo julgados pelo comportamento no período em que há o vínculo laboral. Trazendo um pouco a realidade da Espanha, onde eu fiz o meu doutorado e o meu pós-doutorado, há um dado muito interessante. Os contratos lá são feitos por 6 meses. A Espanha hoje é um país onde tem crescido assustadoramente os trabalhos temporários, cerca de 35% de todos os novos contratos são feitos de forma temporária, e se utiliza a temporariedade como forma de recontratação. Isso significa que se o funcionário é profundamente adaptado, que não dá problema, atende todas as demandas da empresa naqueles 6 meses de trabalho: perfeito, ele terá seu trabalho renovado. Se o sujeito critica, se subjuga a lógica de atuação e enfrenta a realidade de docilização do trabalho que é imposta, ele não terá o seu contrato renovado. Um discurso desses pode ser reforçador, sobremaneira, dessa prática da precarização como estratégia de recontratação. Isso se torna um instrumento bastante perigoso para o mercado de trabalho. Sabemos que dentro do discurso organizacional isso ocorre (e eu oriento estágios e sei disso através de muitos estagiários). Os trabalhadores passam pela seguinte realidade: se o sujeito está bem dentro do espaço de trabalho, ele será recontratado, ele está atendendo as demandas da organização: perfeito. Se não, eles vão afirmar: “olha, amanhã, tem 15 pessoas pra ocupar a tua vaga”. E, de uma certa forma, no Brasil este contexto está ainda um pouco mais ameno, mas, na realidade europeia, se um engenheiro é posto pra fora, amanhã haverá 10 engenheiros, talvez muito mais qualificados, pra ocupar aquele espaço. Essa fragilização acaba sendo nefasta para o trabalhador. Não tem quem me tire da cabeça que, em nenhum momento, fragilizar o trabalhador seja uma estratégia que perdure e que faça o mercado melhor. Acho que isso é um grande engano. Pensar na estabilidade como recurso de acomodação é uma coisa um tanto ultrapassada. Eu acho que a estabilidade é uma garantia, é uma certeza. Sabe-se lá o que é, como precarizado, como trabalhador temporário, não poder fazer planejamento de vida. Isso acaba interferindo na saúde desse trabalhador. Vamos ponderar um pouco o discurso do ministro e dizer que foi, talvez, uma percepção equivocada. É melhor do que imaginar que ela foi intencional e tem um viés político de liberalizar o processo de precarização.
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